Trem do Pantanal

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Mitos pantaneiros (contos e causos)

Cáceres-MT


Cáceres é uma cidade bicentenária, fundada em 06 de outubro de 1778, por ordem do capitão-general português, Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, 4° governador de Matogrosso na época, daí o nome em homenagem ao seu fundador.

Por se localizar em um ponto estratégico as margens do rio Paraguai, a sua fundação foi fundamental para firmar segurança em território de fronteira com a Bolívia, para escoação de produtos pelo rio e facilitar a comunicação da cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade “primeira capital de Matogrosso” com Cuiabá.

O rio Paraguai era a principal forma de escoação de produtos extraídos de origens animais e vegetais do pantanal, neste período foram implantadas grandes fazendas de açúcar e charques, onde algumas tiveram grande expressão nos mercados internacionais como as fazendas “Descalvados, Barranco vermelho, Jacobina e Facão” essas fazendas se utilizavam de trabalho escravo trazendo muitos escravos negros para trabalharem nas suas produções.

Os negros traziam consigo suas crenças, tradições e cultos oriundos da áfrica, neste período já aviam varias revoltas dos negros em busca de liberdade, alguns insurgentes se rebelavam , fugiam e se agrupavam em determinados lugares estrategicamente de difícil acesso em margens de rios, serras e matas, formando os Quilombos.

Nas margens do rio Paraguai também avia muitas tribos indígenas, com suas culturas e crenças que com o tempo e proximidade com os negros aconteceu a miscigenação entre raças e culturas e mais tarde entre brancos também.

Daí a abundancia cultural de lendas, costumes e tradições no pantanal, outro fator importante foi a grande migração de pessoas por volta de 1960, em busca de trabalho e riqueza que implantou de vez a pecuária na região trazendo consigo os valentes peões pantaneiros “outra fonte inesgotável de culturas e posteriormente o comercio de peixes , para o consumo e turismo de pesca.

Fiz esta pequena introdução, para o leitor ter idéia de onde vem tanta imaginação com riqueza de detalhes que atravessa gerações, sendo contadas de pais para filhos através dos anos, outras talvez criadas pela imaginação, pela religião, por um acontecimento natural, uma mudança climática, confronto com algo inesperado. A proximidade com a fauna e flora, faz com que cada vez que uma historia seja contada ,sempre será introduzido nela algo a mais,um fenômeno sobre natural , uma cobra que o tataravô contou que tinha 3 metros e chegou nos dias de hoje com 15,ou um conto do pai sobre algo que deixe o filho amedrontado com o intuito de obter obediência , que através dos tempos se transformou em uma grande lenda. Enfim!A simplicidade e respeito que os pantaneiros têm com a natureza, a forma de como interagem com os peixes, animais e plantas, as maneiras simples e arcaicas de utilizar os meios de sobrevivência que faz deles um povo de cultura única e muito singular.

fAZENDA DESCALVADOS.

FAZENDA BARRANCO VERMELHO.


FAZENDA FACÃO.


FAZENDA JACOBINA.


Fiz aqui um apanhado de três das dezenas de contos e lendas, contados a mim por ribeirinhos , e nativos da região , vividos por eles ou repassados de pais para filhos, passei horas escutando os mais inusitados causos pantaneiros , dando sempre preferência aos contos dos mais velhos e sábios de cada lugarejo,em alguns acampamentos,conversei com pescadores de mais de 50 anos de profissão e pude viajar entre a realidade e ficção, por varias vezes me senti vivenciando situações incríveis, junto com os protagonistas de cada conto, até do meu pai consegui arrancar uma história, que ele evita de contar por ninguém acreditar e percebi que em minha própria família existe um passado mitológico que agora pretendo não deixar morrer com o tempo.

Deixo claro que tudo que foi narrado neste texto, são contos e lendas a mim passados por pessoas simples e vividas em meio aos costumes pantaneiros e não cabe julgamento algum  para afirmar se é verdade ou  mito. Não existe embasamento técnico ou cientifico sobre estes textos , é simplesmente cultural.

MINHOCÃO.
Lembro me do dia em que conheci  o Mané, em uma das minhas pescarias, um índio casado com dona Elena ,uma senhora negra descendente de quilombolas, que moram a muitos anos as margens do rio Paraguai , rio acima onde me hospedei por alguns dias a convite de um dos filhos do casal, na casinha de pau-a-pique, na verdade posso até dizer que é uma tapera, feita de lascas de taboca e rebocada com barro e coberta com folhas de uma palmeira conhecida como Indaiá, casinha construída na beira do rio em uma grande curva cheia de pedras de onde da janela da frente eu podia ver os dourados atacando os pequenos peixes nas pedras submersas, lugar muito rústico e simples,mas aos olhos de um pescador era a visão do paraíso, e como fui bem recebido por estas pessoas simples , e entre um descanso e outro , no intervalo entre as pescarias é que presenciava  contos de belas histórias do seu Mané. Mas a mais impressionante ele me contou no segundo dia de pescaria, depois de um belo dia de pescaria, ao entardecer escutei dona Elena chamar por um dos seus 6 filhos, o Donato, moleque que apesar de ter apenas 9 anos já era muito esperto e ativo e não esperava a mãe mandar duas vezes para fazer um mandado “ Donato pega o frangão vermelho, filho da galinha samambaia”, e não demorou nada, já vi o menino barrigudinho, passar correndo por mim e entrar em um dos cômodos da casa e já voltar rapidamente com um estilingue em uma das mãos e umas três pedras brancas bem arredondadas na outra  mão , e já fiquei imaginando para que serviria o estilingue, sai pela porta do fundo e fui ver se aquilo era possível, se aquele moleque conseguiria abater um frango tão grande com uma simples pedrada, e de La da porta indaguei, “se você matar este frango de primeira vou te dar 20 reais agora” o péstinha com um olhar meio que sarcástico e na certeza do feito, falou baixinho, “então ta” e mau deu tempo de eu piscar e já escutei a lapada da borracha e o barulho da pedra acertando a cabeça do frangão que imediatamente começou a se debater já com a cabeça esmagada pelo impacto da pedra, correu em direção do frango o apanhou e veio em minha direção e com a mesma vos  baixa me disse “ seu Luiz num precisa pagar eu não, minha mãe vai brigar se eu receber”, eu ainda meio bobo com aquilo , corri até minha carteira peguei os 20 reais, e disse a dona Elena, “ dona Elena este dinheiro é do Donato por direito, ele não me pediu nada, e sim fui eu quem ofereceu , então por favor não brigue com ele” e assim foi, o menino todo bobo com “tanto dinheiro” que avia ganho. Depois do frango abatido a mãe mandou que ele fosse na rocinha atrás da tapera e tirasse algumas espigas de milho verde para ela fazer uma polenta para servir com o frango, aquilo soou como musica para os meus ouvidos .A noite caiu e logo estava La no fogãozinho a lenha uma enorme panela com um frango caipira ao molho e uma polenta de dar inveja nas grandes industrias e para acompanhar ,um arroz e feijãozinho de caldo grosso, me fartei em cima daquela comida e depois fomos para nossas redes tomar uma pinguinha e mais uma vez escutar os contos do Mané.
Foi então que ele me contou que a uns três anos atrás , quando dona Elena estava lavando roupas na beira rio aconteceu uma tragédia naquela família, como de costume as filhas mais novas do casal sempre iam ajudar a mãe na lavação de roupa, o serviço é bem dividido, cada uma faz uma parte, como as meninas sempre faziam a parte de estender roupas na grama da frente da casinha , sempre lhes sobravam tempo para as brincadeiras em quanto a mãe esfregava as roupas, e as meninas sempre ficavam tomando banho no rio ali perto, e em um desses momentos enquanto umas das meninas nadou um pouco mais longe foi que a mãe escutou o grito pedindo ajuda, e quando tentou fazer algo já não deu mais tempo,e  a menina já avia desaparecido dentro do rio.Por muitos dias os pais, irmãos e amigos procuraram pelo corpo mas não encontraram,dona Elena , talvez em um minuto de desespero disse ter visto as águas fazerem movimentos fortes e circulares em volta da filha antes de ela sumir.
De La da beira do fogão escutei dona Elena interromper o Mané, dizendo “foi o Minhocão Luiz, eu tenho certeza, vi os movimentos dele antes de comer minha filha, e então o Mané abaixou a cabeça e com uma voz muito baixa, quase imperceptível disse, foi sim o maldito”. Depois de ouvir aquilo fiquei muito chocado, e por um breve momento, um silencio profundo tomou conta do ambiente! Ficaria impressionado se eu não fosse uma pessoa com um nível de instrução razoável para acreditar na razão, na minha cabeça sabia que foi um afogamento, talvez causado por uma câimbra ou coisa parecida, e que os movimentos na água que dona Elena descrevia poderia ser rebojos causados pelas pedras submersas, criando vácuos na água que poderiam muito bem sugar a menina para o fundo, mas em momento algum questionei a historia ou indaguei algo sobre o assunto , somente escutei e guardei aquilo comigo para não aborrecê-los tentando explicar o lógico.Ao término desta pescaria voltei para casa com uma grande carga de conhecimento.
Mané e dona Elena , ainda são vivos e moram na mesma casinha a muitos anos, estão La vivendo a vida simples mas feliz, os filhos cresceram e vieram para cidade, uns trabalhar e outros estudar, e sempre que posso  , faço uma visita, para pescar ou ouvir os maravilhosos contos do Mané.
Falando do Minhocão, trata-se de um lenda pantaneira de uma enorme serpente , que mora nos poços mais profundos do rio Paraguai, que devora homens e animais e é capas de derrubar barrancos e arvores  nas margens do rio, fazendo enormes tuneis por baixo da terra, provocando o desmoronamento das barracas e afundando as arvores, come os grandes pintados pegos nas armadilhas dos pescadores e afunda barcos com apenas uma batida da cauda, cria redemoinhos capazes de partir um barco ao meio.
 Esta lenda povoa a imaginação de grande parte dos ribeirinhos do pantanal e quase todos tem uma historia para contar sobre o Minhocão. 
O JAÚ DE CABELO.
Em um encontro meu com um pescador conhecido como Juca Boi, que a muitos anos mantém seu acampamento na região da Bahia da Figueira, “lugar que fica a uns 80 km de Cáceres rio a cima” foi que escutei um causo pavoroso sobre o grande Jaú de cabelo. Sempre paro em acampamentos de ribeirinhos para acampar , fazer uma comida ou mesmo para perguntar como a região esta de peixe, pois são estes que moram no rio, e estão sempre monitorando os cardumes, o Juca é um pescador antigo muito supersticioso,que sempre tem bons causos de pescaria para contar, e parando no seu acampamento para fazer uma pescaria, eu fiquei por La uns 5 dias, era por meados do mês de abril e a vazante estava forte na região, estava saindo muitas iscas do mato e avia muitos pintados por ali, firmei acampamento, eu e o meu sobrinho Fernandinho, e sempre que passo por La levo uma garrafa de pinga e dois jogos de pilhas pro Juca e alguns alimentos, pois sempre sou muito bem recebido em seu acampamento.
Depois de fixada minha barraca, fui logo tratando de ajeitar as tralhas para ir colocar minhas armadilhas de galho, coloquei umas 25 linhas em lugares muitos promissores.Próximo ao poço do Acurí, amarrei uma vara bem comprida de maneira que a linha de seda de 3 mm ficasse em uma água profunda e correntósa, e na ponta amarrei um anzol de 12/0 marine com um chumbo de 300 gramas, pois sabia que por se tratar de um poço, poderia bater algum jaú ou pintado grande, assim sendo eu e o parceiro fomos em busca das iscas para iscarmos logo mais a noite e sem muito sacrifício e com uma boa tarrafa pegamos muitos piaus e curimbatás, e algumas pacu-pevas, entre tudo dava umas 40 iscas que era mais do que suficiente para iscar a noite toda, quando escureceu saímos para iscar os anzóis e quando cheguei na armadilha que ficava bem na cabeceira do poço, resolvi iscar uma pacu-peva de tamanho razoável, e voltamos para o acampamento para olhar as linhas só de madrugada, as duas horas da manha,acordei o Fernandinho e fomos olhas os anzóis, tiramos 4 pintados de bom tamanho e um jaú que pesou uns 20 kg, e quando cheguei na armadilha do poço , encontrei o anzol totalmente reto, e percebi que se tratava de algum peixe maior que avia escapado, chegando no acampamento fui contar o acontecido ao Juca e mostrar o anzol aberto para ele, que de prontamente indagou “ é o jaú de cabelo que fez isto” então eu respondi que não existia isso de jaú de cabelo e notando que o pescador estava ficando nervoso com meu questionamento resolvi ficar quieto e deixar o assunto para depois. Ao amanhecer fomos mais uma vez olhar as linhas e tiramos mais um pintado, e na linha que tinha endireitado o anzol tinha acontecido de novo, só que dessa vez a  vara com o anzol de galho que eu avia colocado La não estava mais, algum peixe tinha arrancado ela do lugar e escapado mais uma vez, e lógico que comecei a ficar perturbado, mas no fundo sabia que se tratava de uma coincidência. E quando falei para o Juca, ai ele caiu de pau em cima de mim, dizendo que se tratava do Jau de cabelo e que eu tomasse cuidado , e então me contou muitos fatos de ataques do tal peixe a pessoas , inclusive narrou com detalhes quando um amigo dele se deparou com o jaú de cabelo, quando estava mergulhando para desenroscar um pacu  preso na armadilha e foi atacado , ele tentou ajudar o parceiro mas não conseguiu , viu o amigo se afogar e não pode fazer nada.
Não sei explicar como, mas o Juca naquele dia ficou inquieto, e de uma hora para outra decidiu ir embora para cidade, me pediu desculpas ,e disse que tinha compromissos a fazer, vi nos olhos dele e nas atitudes que estava com medo , ficamos então só eu e o Fernandinho e ainda tínhamos mais 4 dias de pesca pela frente, na segunda noite preparei para a armadilha do poço uma vara bem grossa de uma madeira chamada de cachoá, que é praticamente inquebrável quando esta verde e amarrei com uma cordinha de ceda de 3mm e um anzol de 14/0, sabia que era um exagero, mas já estava questionando se era coincidência mesmo, e a noite isquei um enorme curimatã, que pesava uns dois kg, os dias passaram e aquela isca continuou La viva esperando uma bocada de um bom peixe. E no fundo , fiquei mesmo querendo pegar o tal Jaú de cabelo, mesmo sabendo que aquilo era folclore puro, no penúltimo dia de pescaria na olhada de manha, vi que a vara do poço do acurí estava com um peixe  pego, e em se tratando das puxadas que vi, sabia que era um peixe grande, mesmo sabendo do impossível torci muito para que fosse o tal Jaú, e que eu conseguisse vencê-lo para mostrar ao Juca e demais pescadores supersticiosos. Depois de uma boa briga venci a luta com um Jaú de 60 kg,que apesar de ser um grande peixe fiquei decepcionado pois procurei cabelos por toda parte do peixe e não encontrei, como já estava com muitos pintados pegos tirei algumas fotos do jauzão e o soltei de volta, para que talvez algum dia eu o capture bem maior e talvez com os cabelos. O poço do acurí é famoso na região por ter grandes Jaús, já vi alguns pegos na região que pesaram mais de 100 kg, mas ainda nenhum com cabelo.
Reza a lenda pantaneira que existe um Jaú que de tão velho e grande tem cabelos debaixo dos ferrões e em muitas partes do corpo e que ataca e mata pessoas que nadam perto dos poços onde mora, muitas mortes por afogamento são atribuídas ao Jaú de cabelo, principalmente as vitimas que não são encontradas.  
PAI DO MATO.

Sem duvida nenhuma  dentre todos os  causos mais inusitados e emocionantes que já ouvi este do pai do mato sem duvida foi o melhor.Conto que jamais saiu da minha memória e ainda me faz viajar no pensamento entre mito e realidade.

Essa lenda abita a imaginação de pescadores, sertanejos e caboclos , por varias regiões do Brasil, e em cada uma delas, ela é contada de maneira diferente.Uns dizem que trata-se de um animal muito parecido com um homem, mas com grande estatura e corpo coberto de pelos grossos e escuros , outros relatam o biótipo  de um animal baixinho com pés de cabrito e corpo de macaco e rosto de homem, há quem diz que já o viu , o relatando como uma criatura estranha e esquiva , que aparece montado em um porco selvagem,e  some sem deixar vestígios.

Dizem os mais velhos , que esta criatura mitológica , não faz mal algum as pessoas, mas sempre vem aos acampamentos para atentar os pescadores e caçadores que cometem excessos,  faz barulho nas moitas e joga pedras no mato e na água para espantar os peixes e animais, outros relatam que ele bate nos cães de caça com uma vara de cipó, para proteger o animal perseguido,nas regiões nordestinas dizem que é possível matá-lo, mas o tiro tem que ser no seu único ponto fraco que é o umbigo e que o atirador tem que ser muito bom e rápido no gatilho, porque ele esta sempre em movimento e nunca mostra seu ponto fraco .

No pantanal existe esta lenda e até mesmo meu pai já avia relatado a mim algumas historias referente ao pai do mato, mas foi na fazenda Santa Barbara , em uma passagem minha por La, que seu Zé Pedro , “ peão antigo de pele escura e bem esfolada pelo tempo e lidas,homem de estatura media com tronco e braços avantajados e uma cicatriz enorme no lado esquerdo da face, feita por um touro marruá a uns 20 anos atrás” me contou uma historia de seu pai “ o falecido Zé Bento”.

Fomos para a fazenda Santa Barbara para pegar uns porcos monteiros a laço e trazer para amansar e engordar para o abate, fazenda a uns 220 km de Cáceres! Fizemos o percurso por horas , e por uma estrada pantaneira cheia de obstáculos , hora cheia de areões, hora com grandes poças d’águas, sem contar as dezenas de porteiras a serem abertas durante o percurso, mas fizemos com prazer, pois o espírito aventureiro sempre fala mais alto, quando se trata, de paisagens pantaneiras e as horas sempre voam nestes lugares   

Estávamos no mês de julho e em uma noite de lua clara se não me engano, era lua  cheia, depois de um dia cansativo com 6 porcas e dois machos novos capturados, eu e mais dois amigos , fomos convidados pelos peões da fazenda a participar de um churrasco pantaneiro feito no pátio da casa velha.

Como de costume a carne é assada em uma fogueira e espetada com espetos feitos de estacas cortadas na hora, somente temperada ao sal grosso e em volta da fogueira todos se reúnem em um circulo sentados em banquinhos ou no chão de grama , para falar sobre o dia de lida e contar os causos e aventuras de cada um, o que não falta nestes encontros é o famoso tereré “ erva tomada com água em uma guampa feita de chifre, uma espécie de chimarrão pantaneiro, só que ao invés de usar água quente eles tomam com água natural mesmo, nas cidades pantaneiras é costume colocar água gelada”.


Durante estes dias que passei por La, me identifiquei muito com uns dos vaqueiros, que foi o primeiro a nos receber na chegada, logo quando o vi percebi em sua cintura em um coldre de couro bem velho e surrado, o cabo de um revolver antigo que parecia ser de madre perola, ou coisa parecida e a ponta do cano vazando com sobra na parte de baixo do coldre, na hora fiquei quieto mas me interessei muito em saber de que arma se tratava, e depois de fazer amizade com o vaqueiro e saber que seu nome era Zé Pedro , foi que pedi informações sobre aquele revorvão, antigo e bonito que dele não despregava por nada. Então ele me disse um pouco sobre a arma e que na roda de churrasco me contaria a historia do revolver.

E foi de noite na beira da fogueira depois de umas guampadas de tereré , que o Zé sentou do meu lado, sacou a arma do coldre, apertou um sub-gatilho , que destravou o cano fazendo com que a arma se abrisse com se fosse a culatra de uma espingarda, deixando o tambor exposto, virou a arma para baixo deixando cair na mão 6 enormes balas, passou para minhas mão e me pediu para olhar, naquele momento fiquei maravilhado com o que vi, e ao ler a descrições da arma, vi que se tratava de um Smith e wesson  44, muito antigo, mas em bom estado de conservação, e todos os vaqueiros dali chamavam a arma de chimitão.

E então me contou que se tratava da arma de seu pai, um pracinha brasileiro que lutou na segunda guerra,e trouxe a arma da Europa , que depois de se aposentar , comprou umas terrinhas no pantanal e para La se mudou , e firmou residência até sua morte,se transformou em um peão e ficou muito conhecido na região por ser valente nas caçadas de onça e queixadas e também nas lidas com o gado. Seu nome era José Bento, mas todos o conheciam como Zé Bento, homem destemido e bom no gatilho que perseguia e matava onças com apenas o revolver,disse que ele dormia e acordava sem tirar aquele canhão da cintura, homem   que veio do sul do pais, respeitado por cumprir seus compromissos ao pé da letra e ser um ótimo patrão para os peões da fazenda .

 Disse também que não avia no pantanal animal que não tombasse instantaneamente com um tiro do chimitão, desde que a bala pegasse da paleta para frente, e é claro que eu acreditei, depois de ver o tamanho daquelas balas.

Zé Bento, matou de tudo quanto foi bicho naquela época , até um búfalo macho padeceu sob o cuspir de fogo do chimitão 44, mas era nas caçadas de onças que ele se mostrava  valente,uma vez,matou uma onça acuada no chão em uma moita de gravatá fechada de cipós por cima, teve que abrir caminho com o facão engatinhando entre os cipós até chegar perto, e quando percebeu estava a uns 5 metros da bicha,quando ela o viu, abandonou os cachorros e partiu para cima dele, que mesmo de baixo de muitos cipós conseguiu sacar a arma e dar 4 tiros na onça , fazendo com que ela caísse por cima dele. Outra foi a que o Tonhão atirou pelas costelas com a carabina 38, e ao cair viva pegou com as unhas o melhor cão mestre, chamado de leão, e Zé Bento acudiu o cachorro com um facão,para não gastar as difíceis de conseguir balas de 44, pegou em uma das pernas do cachorro e o puxou e com a outra mão  lanhou a cara da onça de facão até ela cair morta.

SMITH & WESSON  44 modelo russiam
 
Aquelas historias estavam me deixando maravilhado, quando ele começou a contar o único fato que deixou o seu pai realmente com medo daquelas matas pantaneiras, foi em um dia santo,dia de nossa senhora, quando um vaqueiro da fazenda vizinha veio avisar o Zé que uma onça tinha matado e comido na noite anterior uma novilha e se dava para ele ir matá-la.
 De prontamente ele aceitou o chamado,foi logo apanhar as tralhas e escolher as balas “insprusivas” como os pantaneiros se referem a munições expansivas ,porque essas é que faz um buracão no bicho. Já logo na saída quando estava atrelando os cães mestres foi que sua mulher o advertiu sobre o dia santo, que não era bom sair para caçar naquele dia, mas como um bom veterano de guerra que já viu de tudo e incrédulo com superstições ele nem deu ouvido a esposa , arreou o cavalo pantaneiro baio, e partiu com a cachorrada em direção do lugar onde a onça matou a novilha, já na chegada,em um capão de mato em meio a um descampado o cão mestre deu rastro da bicha e em pouco tempo a cachorrada levantou  corrida ,por varias vezes a onça deu acuação mas sempre que Zé chegava perto ela saia em disparada, em uma das saídas ele chegou a ver de relance a bicha e com toda experiência que tinha soube que se tratava de um macharrão pelo tamanho .Depois de algum tempo de corrida e o aperto dos cães a danada acuou no chão mesmo na beirada de igarapé, lugar muito sujo de mato baixo e fechado, cheio de cipós e gravata
  Ao chegar na acuação , Zé viu uma grande onça no meio de uma moita fechada e os cães naquele rebuliço , volta e meia, um ou outro cachorro dava uns ganidos de quem tomou uma unhada ou uma mordida, então ele foi logo apiando do cavalo, e chegando bem perto para o tiro fatal, quando percebeu vultos escuros passando por todo lado e a cada passada um cão gania de dor, apresou-se em abrir caminho e quando teve a oportunidade, sacou o revolver e fez pontaria, já na certeza do tombo, e puxou o dedo, com o estalo do tiro ele escutou o ganido de uns dos cães e viu que estava morto,pensou que avia acertado seu próprio cachorro, então chegou mais perto ainda da onça e atirou novamente, e nada da bicha cair e nem se mover com o impacto da bala, se aproximou mais e dessa vez teve a certeza que era impossível errar, e deu mais 4 tiros seguidos , até as balas acabarem , e quando olhou de novo viu a onça saindo a passos lentos rosnando, e todos os seus 4 cães mortos dilacerados por unhas e dentes, até o leão que era o mestre mais experiente da matilha e nunca chegava para morder uma onça na acuação estava morto,então carregou mais uma vez o revolver e foi em direção para onde a onça foi, sabia que não tinha errado os tiros e procurou por marcas de sangue no chão e nas folhas mas não viu nada, ao voltar para onde estava o cavalo, viu novamente os vultos negros passando pelas folhas a sua frente, e perguntou por varias vezes quem era, sem ter resposta. Então ameaçou de atirar se ninguém aparecesse, andou mais um pouco a frente e viu um grande animal escuro, parado e olhando para ele, era peludo com orelhas pontudas, e olhos grandes e batia com as patas no chão como se o tivesse ameaçando. Já atordoado pelo acontecido com a onça, Zé Bento sacou o chimitão 44 e deu 6 tiros seguidos no animal, que caiu abatido instantaneamente , meio que com medo e receio do que era,foi chegando bem de vagar perto do animal, e ficou chocado com o que viu, ele avia acabado de matar seu próprio cavalo, um dos melhores e mais queridos da fazenda .
Saiu correndo em direção a sua sede , chegou em casa em estado de choque, todo sujo e lanhado dos pés a cabeça por espinhos, com o revolver na mão, e sem dizer uma só palavra, entrou em seu quarto e por La ficou o resto do dia, e só depois de muito tempo foi que resolveu contar o acontecido para a esposa e os filhos.
PORCO MONTEIRO.

PEÃO PANTANEIRO.

CATEDRAL DE CÁCERES-MT
Depois disso , Zé Bento ficou quase dois anos sem caçar e aos poucos , retomou a coragem dos tempos antigos,ainda matou umas 15 a 17 onças até  morrer no inicio dos anos 70,tombado por uma tuberculose, mas sua vida ficou marcada com respeito e orgulho por parte da família e amigos que o conheceram e contam suas aventuras pelo pantanal a fora.
A maioria dos peões daquela fazenda são enfáticos em dizer que foi o Pai do mato que causou toda aquela confusão mental na cabeça do Zé bento durante aquela caçada, e quase todos eles nunca caçam e nem pescam em dia santo.
Então Zé Pedro ao terminar de falar do Pai com os olhos cheio de orgulho, se levantou devagar , tirou da cintura uma enorme faca coqueiro que estava na bainha junto com uma chaíra andou de vagar até um grande espeto de costela que já esta bem ao ponto, cortou um pedaço e comeu , cortou mais uma tira de carne veio em minha direção e me serviu , e me perguntou , luizin, (na verdade todos me chamam de luizinho, e foi  deste sotaque que alguns ficaram me chamando de  luizin) você ta com sua lanterna ai? Eu disse não ando sem ela de noite ZÉ nesta grama que pode ter jararacas , então me convidou a se retirar da turma por um momento para me mostrar algo.
Fomos em direção ao fundo da casa grande , depois de uns 200 metros chegamos  na beirada de uma matinha mais alta e La esta um monte de terra bem cuidado envolto por gramas com uma cruz de aroeira já muito velha e restos de velas , e me disse aqui esta enterrado meu pai Zé bento luizin . Naquele momento minhas pernas ficaram bambas, abaixei a cabeça e benzi o corpo em sinal de respeito e ainda meio comovido com o que tinha ouvido sobre aquele homem enterrado ali.
Fiquei fascinado em ver como os pantaneiros  levam esta superstição ao pé da letra.   
O vaqueiro Zé Pedro se tornou um grande amigo e por varias vezes voltei a fazenda santa Barbara para pegar porcos, ele é vivo e agora trabalha em outra fazenda bem perto aqui de Cáceres, dias atrás veio na minha loja para comprar um óculos de grau , esta cego do olho direito acometido por um glaucoma e com a vista esquerda precisando de grau, depois de bater um bom papo fiz seu óculos que corrigiu muito bem seu problema visual, e se alguém duvida desta historia o Zé Pedro  ta por ai é só vir aqui que o apresento para que conte sobre seu pai Zé bento.

Nas fazendas e ranchos pantaneiros é muito comum ouvirmos historias de acontecimentos lendários, sempre há alguém que tenha um causo supersticioso para contar. A influencia indígena e africana contribuiu muito para disseminação de muitos eventos místicos, sempre envolvendo a natureza.
 Todos que trabalham nas antigas fazendas de escravos têm um evento a ser narrado, vozes que vem das antigas senzalas, barulho da chicoteadas e gritos dos negros que apanhavam, ruído de panelas caindo no chão, vozes de índios nas florestas, cavalos que amanhecem com as crinas trançadas.
Todo este misticismo contribui para a riqueza popular da região e faz com que nosso imaginário viaje por alguns momentos em um mundo de ilusão, onde o impossível se torna possível, onde as crenças se tornam realidade na cabeça dos que contam e dos que  ouvem estes maravilhosos causos.
 O que para nós é mito, para eles é crença! O que nós, foge a razão, neles provoca medo e respeito.
Assim, “cria-se vida”, o Pai do mato, Pé de garrafa, Negrinho d’água, Minhocão, Jaú de cabelos, Saci perere, Mula sem cabeça, Boitatá, dentre muitos outros.
O pantanal é assim!Rico de todas as formas.   
                                      
LUIZ EMERSON DE SOUSA.



Um comentário:

  1. Muito bom seu artigo! Sou campograndense e fui criado em uma fazenda de minha família em uma região de furnas na cidade de Bandeirantes-MS. Essas e outros folclores também fizeram parte da minha infância e povoavam a minha cabeça nas noites de insônia. Grande abraço, pescador!

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